Ponto de Vista

Um ato de expressão que precisa ser compreendido, não repelido

Josi Helena e os desafios para tornar o uso das tranças mais seguro e saudável

O fato de estar na moda e ser visto com mais frequência, inclusive na cabeça de celebridades como Taís Araújo, IZA e do piloto Lewis Hamilton, não muda o fato de que ainda existem inúmeras questões relacionadas com as tranças que padecem da devida atenção. E essas questões se dão tanto no campo da técnica dos trancistas e dos riscos e cuidados inerentes ao seu uso, quanto ao desconhecimento dos profissionais da saúde sobre o que as tranças representam do ponto de vista social, de identidade cultural e de autoestima para quem as usa, em especial as mulheres.

As tranças representam um emaranhado complexo de fatores culturais e sociais com reflexo direto na imagem e na saúde das pessoas. Uma questão de empoderamento, uma relação com a ancestralidade.

Inegavelmente, o ato de trançar os cabelos manifesta uma dimensão cultural importante das pessoas negras da diáspora para reafirmar a sua negritude. Um elo com a história e a ancestralidade. Por muito tempo, a transmissão do conhecimento se dava de pessoa para pessoa. A cosmetóloga e tricologista Josi Helena, quando começou a se interessar encontrou uma trancista, uma africana, para entender de fato como funcionava. “Ela não se lembrava como aprendeu a fazer, ela simplesmente foi mostrando na minha mão e eu fui aprendendo como fazer”, lembra. E a maior parte do ensino sobre tranças ainda é feito muito na base do “ver e aprender”.

A transmissão ancestral do “como trançar” é muito ilustrativa da condição artesanal e artística das tranças. “A execução é uma arte, então o resultado final é lindíssimo”, diz Josi.

Só que assim como existe um saber na arte de trançar, existe a necessidade de conhecimento técnico sobre os cabelos e o couro cabeludo para que a trança não se converta em um problema para a saúde. E aí reside um dos grandes problemas do mercado de tranças hoje em dia: a falta de embasamento técnico e científico das trancistas. Aspectos relacionados com a biossegurança e conhecimentos básicos de cosmetologia são as principais deficiências do mercado de tranças hoje, na visão da tricologista. “A maioria não pensa nessa parte, e sinceramente, não vejo hoje nenhum trancista que traga essa bagagem de conhecimento”.

Essa falta de conhecimento dos profissionais foi um desafio para Josi, quando ela lançou produtos especificamente para os cuidados das pessoas que usavam tranças: dois tônicos que ela mesmo desenvolveu para atender a queixas muito específicas como coceira e quebra de cabelos em função do penteado. “Quando apresentei os produtos para os profissionais, eles não entendiam direito a necessidade do produto. E creio que não entendiam porque eu usava termos científicos, mesmo que básicos”, pontua.

Para suprir essas deficiências, Josi lançou um curso de três horas para trancistas no qual explica o básico de tricologia e cosmetologia, um meio de transmitir o que é essencial para que o profissional possa saber como lidar com esses cuidados. E esse conhecimento é de extrema importância, porque todo método de alongamento, como o das tranças, tem efeitos colaterais.

Embora falemos em tranças, existem diversas técnicas diferentes - nagô, box, entrelaçamento… Cada qual com a sua beleza e significado, e necessidade de cuidados especiais. Sim, porque como lembra Josi, por mais lindo que seja o resultado final de uma trança, as pessoas não podem se esquecer que ela é algo decorativo. “Como é um procedimento que não é barato, às vezes, a própria trancista fala que o resultado vai durar três meses. Só que a trança é um penteado, não substitui o cabelo das pessoas. Ela precisa desfazer as tranças e dar um tempo de descanso para os cabelos e o couro antes de trançar de novo ”, alerta Josi, citando mais um exemplo dos riscos inerentes à falta de um preparo técnico por um número maior de trancistas.

Problema comum, a alopecia por tração costuma cometer pessoas que, justamente, usaram tranças por período longuíssimos. “Se você trança e destrança a cada mês, mas sem dar um bom espaço de descanso, a pessoa pode desenvolver alopecia por tração. Dependendo do grau em que ela está, é possível estimular o crescimento, mas se houver um espaçamento longo, fios fracos e quebradiços, principalmente na frente, e se esse tecido cicatriza por conta do processo inflamatório prolongado, essa alopecia por tração evolui e aí não é possível reverter mais”, alerta. Outras questões envolvem processos inflamatórios desencadeados por tranças muito apertadas, um problema grave gerado por um erro que decorre da falta de conhecimento básico dos trancistas.

Cuidar do cabelo com tranças não é uma tarefa simples. Josi, por exemplo, recomenda a lavagem uma vez por semana, já que lavá-los de forma excessiva pode causar problemas pela umidade que acaba ficando, já que a secagem do couro é dificultada, mesmo com um secador. Independentemente da trança, os produtos utilizados devem ser próprios para as necessidades de cada pessoa. “Se a pessoa tem dermatite, ela tem que usar o shampoo próprio para isso, mas ele diluído para penetrar mais nas tranças, e durante a semana usar tônicos que vão facilitar a homeostase (o equilíbrio desse couro, porque a gente sabe que o mau cheiro vem de uma disbiose (quando ocorre o desequilíbrio na microbiota).

Mas essa é uma parte do problema. Mesmo quando os cuidados são tomados, Josi Helena aponta para a grande deficiência que existe no Brasil de produtos adequados para preparar o couro e o cabelo para a execução do penteado. “As profissionais viram que fora do Brasil, as trancistas usavam pomada para tratar e dar acabamento. Aí tentaram replicar aqui com o que existia no mercado, principalmente pomadas masculinas fixadoras, o que gera muitos problemas, porque além de não serem adequados para as tranças, a realidade dos países é diferente”, explica a cosmetóloga. Lá fora quem faz trança não costuma ter problemas para passar 15, 20 dias sem lavar os cabelos. Aqui no Brasil, esse intervalo de tempo sem lavar a cabeça é praticamente impossível de se ver. Além disso, Josi conta que a maior incidência de problemas relacionados às pomadas acontece nas épocas de festividade. “As pessoas fazem o penteado e vão para a praia. Vai dar problema mesmo”, lamenta. Hoje, além da sua própria marca, Josi vê apenas mais uma que tem produtos específicos para cabelos trançados e com dreads e que opera de forma legal e dentro das regulações do mercado cosmético brasileiro.

O preconceito dos profissionais da saúde

Um dos tipos de depoimentos que Josi mais recebe de pacientes é a de que dermatologistas e tricologistas se recusam a olhar para os cabelos e o couro da paciente se ela estiver de trança ou com algum método de alongamento, que são justamente recursos muito usados pelas mulheres negras. “A maior parte dos tricologistas simpelsmente recomenda o não uso das tranças”, lamenta Josi.

E aí, existem dois aspectos importantes. O primeiro, é o desconhecimento desses profissionais da saúde sobre o tema para atender as suas pacientes da forma correta. “Quando elas vão atrás deles em busca de ajuda ( e é sempre importante lembrar que aqui estamos falando de profissionais que são da área da saúde), eles não estão aptos a ajudar. Via de regra, quando esses profissionais não negros olham esse cabelo, esse couro, primeiro dá um nó na cabelça deles, porque não tem o conhecimento, o que poderia até ser superado com um pouco de pesquisa e estudo. Mas eles se negam a aprender”, aponta.

A falta de compromisso de parcela significativa desses profissionais da saúde é que faz com que a cosmetóloga não veja uma mudança no cenário num horizonte de curto prazo em relação a melhoria técnica do mercado de tranças como um todo. “Precisamos de mais gente da saúde, de mais profissionais que queiram mudar esse cenário e ajudar tanto a atender as pessoas como que estejam dispostas a contribuir para o ensino e a formação de trancistas mais qualificados do ponto de vista técnico”, diz. “Eu bato de frente com os outros tricologistas quando digo para eles que as tranças representam um valor cultural, e que as pessoas não vão deixar de fazê-las. Cabe a nós, como profissionais da saúde, ajudá-las a lidar com os eventuais problemas e, principalmente, educar para prevenir. Falar para não fazer trança, ou julgar quem optou por fazer, é simplesmente uma atitude racista”, emenda.

Os trancistas de hoje

Além de mais pessoas começarem a se dedicar à arte das tranças, tem havido um aumento significativo na oferta de cursos para trancistas, perfis nas redes sociais crescendo exponencialmente e canais no YouTube surgindo para ensinar os diferentes tipos de tranças. Esse fortalecimento do mercado levou a mudanças significativas. “As profissionais começaram a se posicionar nas redes sociais e meio que virou hype ser trancista”, acredita. Josi lembra também que muitas artistas brasileiras começaram a aparecer trançadas. “A ISA, depois a Taís Araújo - ainda a maior referência de beleza negra na mídia brasileira, começou a usar trança, a Ludmila... Mulheres negras da mídia brasileira começaram a usar trança e isso gerou oportunidade de ganhar dinheiro”, reforça.

A parte mercadológica do negócio de tranças evoluiu consideravelmente nos últimos anos. Anteriormente, ser trancista não era considerado uma profissão viável para muitos, era apenas uma forma de expressão artística e cultural. Eram poucas as pessoas que conseguiam sobreviver apenas fazendo tranças. “Hoje, os trancistas compreenderam que estão envolvidos em um negócio e tem aprendido a precificar o seu trabalho. “Esse aspecto empresarial ganhou destaque antes mesmo das questões técnicas”, reconhece Josi Helena.

O estigma do cabelo crespo e a dependência das tranças

A imagética do feminino ainda é muito associada ao cabelo longo e fluído em contraste com o cabelo crespo que crescer para cima e é geralmente mais curto. As mulheres devem ser capazes de viver independentemente desses padrões estéticos impostos, porque essa dependência pode levar a problemas de saúde. Mas não é necessariamente fácil se desvencilhar desses padrões externos impostos há tanto tempo e de forma brutal. Para Josi, esse é um dos fatores que faz com que muitas mulheres negras tenham se tornado dependentes emocionais das tranças ou do entrelaçamento, o que pode acarretar em grandes problemas. “Qualquer método de alongamento tem efeitos colaterais, por isso eles não podem ser usados como substituto do próprio cabelo. Mulheres que usam tranças há 20, 30 anos, sem todos os devidos cuidados, desenvolveram calvície grave”, alerta.

Também por conta desse desejo de atender ao imaginário dos cabelos compridos, muitas mulheres negras fazem o uso recorrente de peruca, tornando mais frequente entre elas a alopecia centrífuga central, com perda de cabelo no centro da cabeça. “Isso não é saudável - a trança é uma expressão cultural importante para pessoas negras da diáspora reafirmarem a sua negritude, mas ela também acaba cumprindo esse papel para performar essa representação do feminino que não é real. Aqui temos uma linha muito tênue”, reconhece Josi.

Essa não é uma questão que aflige apenas mulheres sem informação. “O que mais atendo são mulheres muito bem informados, com cargos altos em empresa, que são referência dentro do movimento negro e com problemas gravíssimos do couro cabeludo”. Ela cita como exemplo a escritora Preta Rara, que desenvolveu um problema gravíssimo pela dependência desse tipo de penteado. “A Djamila Ribeiro, você não consegue ver ela com o cabelo natural; a Carla Akotirene, sempre com tranças… Olha como é complexo, são duas intelectuais reconhecidas, e mesmo entendendo toda a problemática, elas não conseguem abrir mão desse padrão”, diz.

O início de uma eventual quebra desse padrão depende de resolver outro problema, este muito mais complexo: a estigmatização que ainda se tem sobre o cabelo crespo. O boom do cabelo natural foi uma falácia para as crespas e crespíssimas, que têm o cabelo fosco e encurtado. As crespas não são cacheadas. “Essa foi uma briga das meninas crespas, primeiro na comunicação e, claro, por produtos adequados, são necessidades diferentes. Vimos muitas marcas se adequando com o passar do tempo, aumentando a linha, o que era uma linha para cabelo com textura, seguindo a tabela de curvaturas, a indústria começou a usar isso como referência para o cliente entender. A indústria precisa compreender que não é necessário impor padrões inalcançáveis para continuar lucrando. Principalmente quando se trata de estética, é crucial que ela também cuide da saúde das pessoas. O foco não deve ser forçar todos a se encaixarem em um padrão, mas sim atender às necessidades reais das pessoas”, conclui Josi.